quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Luchino Visconti - The Stranger (1967) (O estrangeiro - Albert Camus)

Fonte: Postado por Cine Defesa https://www.youtube.com/watch?v=H-JeOginE-w&t=34s
The Stranger 

Luchino Visconti

1967


Por
Marcelo da Rocha Lima Diego
2009

Linguagens de passagem: 
lugares de fala estrangeiros em Camus, Visconti, Cure e Neshat 


 Marcelo da Rocha Lima Diego∗



RESUMO: O romance O estrangeiro, de Albert Camus, foi adaptado para o cinema por Luchino Visconti e serviu de inspiração para uma canção do The Cure. Este estudo busca, através de uma perspectiva comparativista, observar as especificidades de cada uma dessas linguagens, bem como apreender os 
diferenciados lugares de fala dessas criações, fazendo um contraponto com uma obra de videoarte de Shirin Neshat. 


Palavras-chave: Passagens; Lugares de fala; Transposições intersemióticas. 


Pensar a arte como um local de fluxo de sentidos e observar como estes circulam em vias abertas pelos aspectos contextuais parece ser uma via interessante para se flagrar as relações que se estabelecem entre certas obras e as sucessivas camadas de significação que nelas se sobrepõem. O objetivo deste estudo é, a partir de uma perspectiva comparativista, analisar como uma determinada unidade de sentido – aquela que é núcleo dramático do livro 
O estrangeiro, de Albert Camus – atravessou o século XX e chegou ao XXI assumindo diferentes formas, e, consequentemente, diferentes sentidos. 
A escolha desse texto-base – O estrangeiro – obedece a uma dupla motivação. Em primeiro lugar, é uma história que carrega consigo uma problemática de identidade individual e coletiva, seja no questionamento existencialista do protagonista acerca do sentido de sua vida e da fortuidade dos acontecimentos, seja no encontro com o Outro, na tensão do convívio entre franceses e árabes que o romance encena – relegado pela crítica,  
muitas vezes, a pano de fundo. Em segundo lugar, o livro de Camus foi adaptado por artistas de diversas linguagens, como o cineasta italiano Luchino Visconti, autor do filme Lo straniero, e a banda inglesa The Cure, autora da canção Killing an arab, revelando-se objeto privilegiado em processos de transposição intersemiótica. Assim, a trajetória de O estrangeiro trabalha duplamente na fronteira: entre civilizações e entre linguagens. 
Para tanto, um conceito fundamental é o de adaptação. Linda Hutcheon, em A theory of adaptation, compreende a adaptação como, simultaneamente, um produto e um processo: 
como produto, a adaptação é uma transposição de ideias de um determinado sistema semiótico para outro; essa operação deve, portanto, revelar-se na obra de maneira anunciada, extensiva e específica. Como processo, a adaptação pressupõe, de um lado, uma interpretação criativa e crítica, por parte do adaptador, da fonte adaptada; e, de outro, por parte do público, uma recepção em que se apreenda o caráter intertextual, sua natureza de 
palimpsesto. 
Questionando-se sobre aquilo exatamente que é adaptado em uma obra, Hutcheon conclui que, em geral, é a "história", a "fábula", ou seja, o núcleo narrativo (anedótico) que confere identidade a uma obra. Não obstante, observa que também podem ser relidos, interpretados e transpostos em uma adaptação os temas, as personagens e – o mais interessante – o heterocosmo de uma obra; este é [...] literalmente, um outro mundo, ou cosmo, completo, claro, com todas as coisas como a história – lugares, personagens, eventos e situações. Para ser mais preciso, é a res extensa – para usar a terminologia de Descartes – daquele mundo, seu material, sua dimensão física, 
que é transposta e experimentada através de interatividade multisensorial. (Hutcheon, 2006, p.14, tradução nossa) . 
Essa abertura permite que a teorização de Hutcheon – que, por familiaridade, aborda principalmente obras literárias, filmes e óperas – abarque um outro aspecto da criação artística que não apenas o narrativo: o imagético. Fazendo uso de uma metáfora da própria autora, que compara o processo de adaptação com o da evolução das espécies – as histórias sobrevivem, ao longo dos tempos, metamorfoseando-se, migrando de linguagem e desenvolvendo novos atributos que melhor atendam às demandas do ambiente . 
Se, como produto, uma adaptação é uma entidade formal, enquanto produção ela é um feixe de aspectos contextuais, os quais concorrem no revestimento simbólico da obra. E se, na criação de uma adaptação, há um núcleo de sentido prévio, oriundo da obra adaptada, serão justamente esses aspectos contextuais que, aliados às intenções criativas individuais do adaptador, gerarão a forma da nova obra. No fio da navalha entre repetição e diferença – 
entre aquilo que permanece e aquilo que muda – por onde andam as adaptações, tão importante quanto identificar as intertextualidades (o texto adaptado, a repetição) é resgatar é o contexto (o momento e os agentes adaptadores, a diferença). 
Em uma adaptação, a noção de contexto, Hutcheon sublinha, é vasta e variada. 
Engloba considerações tecnológicas – o desenvolvimento de novos meios expressivos –, materiais – o acesso aos recursos necessários, o que se problematiza ainda mais em linguagens industriais como o cinema –, transculturais – a equivalência de instituições sociais – e políticas – o local de fala a partir do qual o novo discurso se erige. Já na recepção de uma obra adaptada – no que, aliás, não se diferencia daquela de obras não-adaptadas –, a vastidão perde os contornos e torna-se pura dispersão: é impossível prever as leituras e os usos aos quais servirá e que, por sua vez, também podem ser objetos de adaptações – a adaptação admite recursividade. 
Filho de uma família de pied-noirs – população que, não obstante a origem francesa, vivia à beira a miséria na Argélia do início do século XX – Camus (Mondovi, Argélia, 1913 – Villeblevin, França, 1960) lança O estrangeiro em 1942. Sartre o procura após ler o livro, fascinado, e os dois iniciam uma amizade que seria interrompida apenas dez anos mais tarde, a propósito de outro livro de Camus, O homem revoltado, do qual Sartre discordava 
ideologicamente. O estrangeiro é narrado em primeira pessoa por Mersault, o protagonista, encarnação daquilo que a crítica camusiana – a partir do próprio Sartre – chamaria de "homem-absurdo". A morte de sua mãe, o assassinato gratuito do árabe, o julgamento, a expectativa da morte, os pequenos prazeres e desventuras do cotidiano são percebidos apaticamente pela consciência narrante de Mersault. A arbitrariedade de sua ação duplica-se  ISSN: 1983-8379 Vinte e cinco anos após a proposição de Camus, o cineasta italiano Luchino Visconti resolve transpor para as telas O estrangeiro. Visconti era, à época, um dos diretores mais consagrados da Europa, e tinha larga experiência em adaptação de obras literárias para o cinema, como demonstravam, já então, filmes como Ossessione (1943), girado a partir de The postman always rings twice, de James Cain; La terra trema (1948), adaptação de I 
Malavoglia, de Giovanni Verga; Senso (1954), versão cinematográfica do romance homônimo de Camilo Boito; Le notti bianche (1957), cuja fonte foi o conto de mesmo nome de Dostoiévski; Rocco e i suoi fratelli (1960), adaptação de Il ponte della Ghisolfa, de Giovanni Testori; e Il gattopardo (1963), da obra-prima de Tomasi di Lampedusa. Suas adaptações, no entanto, sempre haviam sido releituras, recriações; Visconti frisava que os textos originais eram para ele apenas materiais sobre os quais a equipe de roteiro trabalhava. 
Descendente da alta nobreza de Milão, Don Luchino Visconti di Modrone, conde de Lonate Pozzolo (Milão, 1906 – Roma, 1976), converteu-se ainda jovem ao comunismo e militou incisivamente na resistência ao fascismo, sendo preso e torturado; em todos os seus filmes é possível perceber o luxo e a erudição, trazidos de sua bagagem familiar, aliados a uma forte crítica social e a um processo de releitura histórica, advindos de sua orientação política. 
O contrato com o produtor Dino De Laurentiis e com os detentores dos direitos 
autorais é firmado em 1962, e Visconti declara a princípio seu projeto de fidelidade à obra de Camus: "Não o traduzirei. Quero respeitar a essência e submeter-me humildemente ao texto. (...) Vejo [o filme] exatamente como Camus o escreveu. Não quero nem escrever um roteiro" (apud Micciché, 2002, p.56). Essa intenção, que surgira em um primeiro momento de aproximação do romance, ainda distante de sua produção objetiva, e como um desejo do 
cineasta, é em seguida reforçada contratualmente pela viúva do autor, que zelava pela inviolabilidade da obra do marido. Francine Camus exigiu que o roteiro final fosse aprovado por ela, que o rubricaria em cada página, e que da equipe de elaboração do roteiro fizesse parte um conhecedor da obra de Camus em quem ela tivesse confiança. A equipe responsável pelo roteiro de Lo straniero tornou-se demasiado inchada, sendo composta por:  ISSN: 1983-8379   
O próprio Visconti, que coordenava os trabalhos; Suso Cechi d'Amico, sua parceira de longa data; Georges Conchon, um colaborador francês, mais familiarizado com o texto, convocado por Visconti; Emmanuel Roblès, conhecedor da obra do escritor indicado pela viúva Camus; e V. Bonicelli, outro exegeta camusiano, imposto por De Laurentiis por precaução contra 
contestações da viúva. Somou-se, a essa adiposidade de pessoal, outro fator que reduziu a liberdade criativa de Visconti: Marcelo Mastroianni investiu no filme recursos próprios, obtendo da produção a promessa do papel principal; o diretor tem então que abrir mão de Alain Delon, ator que escolhera anteriormente para o papel e em quem visualizava o perfeito 
phisique du rôle de Mersault. 
Em 1967, quando o roteiro de Lo straniero está quase pronto, Visconti toma 
consciência (revela-o em carta) de que o mundo da época do romance não existia mais, que se reduzia a pequenos fragmentos, e que "era preciso ter em conta, inevitavelmente, tudo 
aquilo que aconteceu na Argélia nesse meio tempo" (apud Micciché, 2002, p. 57); deixa circular, embora não haja registros documentais, que pretendia inserir referências à Guerra da Argélia, aos confrontos entre FLN (Front de Libération Nationale, exército revolucionário argelino) e OAS (Organization de l'Armée Secrète, força armada conservadora). No entanto, constrito pelo contrato e pelos inspetores presentes em sua equipe de roteiro, vê-se obrigado a abandonar esses planos. Sob todas essas circunstâncias, o eixo de trabalho de Visconti desloca-se da interpretação para a ilustração do romance. 
O resultado é um filme consensualmente considerado pela crítica como menor, 
dentro da trajetória do diretor, "profissionalmente correto e esteticamente pálido" (Micciché, 
2002, p. 56). A propósito dele, a crítica e semióloga americana Susan Sontag observou o problema que representam, para o cinema, os livros com ampla tradição crítica, de gêneros considerados mais elevados, os clássicos; neles, muitas vezes, o engessamento gerado pela vontade de fidelidade cerceia o uso criativo de expedientes que transportam, para o sistema de códigos próprio do cinema, os sentidos expressos no sistema de códigos específico da 
literatura: 

O primeiro filme de Visconti, Ossessione – adaptado de The postman always rings twice [O destino bate à sua porta], romance de James M. Cain – é uma realização muito mais digna do que sua bela, respeitável transcrição de O leopardo ou do que sua dura e um tanto descuidada 
versão de O estrangeiro, de Camus. O melodrama de Cain não precisava ser "seguido".  
No caso de O estrangeiro/Lo straniero, a arbitrariedade das ações e sua duplicação no discurso do protagonista, que conferem, no romance, a dimensão de absurdo à existência, tornam-se, no filme, um mesmo plano no qual a subjetividade é achatada pela opacidade do real. 
Os eventos periféricos, dispersos pelo texto – como o da angustiada mulher que almoça sozinha no restaurante, ou como na relação de simbiose e crueza do vizinho de Mersault com seu cão –, que desempenham o papel de índices de um mundo desolado nas suas mais domésticas relações, surgem, no filme, como elementos desconexos, cenas que interrompem a progressão dramática sem demonstrar uma contribuição no repertório simbólico criado ao longo da trama. Para transpor o narrador de primeira pessoa para as telas, Visconti utilizou-se de dois recursos. O primeiro é um macroflashback que ocupa 
metade da duração do filme: toda a primeira parte do romance, os fatos que antecedem a 
prisão de Mersault, aparecem como se fossem a narração deste para o juiz. Essa personificação – no juiz – do interlocutor ao qual a voz narrativa se dirige permite a presença do segundo recurso, a voz em off, que recita trechos originais do livro e faz as vezes da consciência reflexiva de Mersault. 
A diferença nodal entre os registros verbal e visual transparece nas aparições 
sucessivas – conforme descritas no romance – dos árabes no filme. Contrariamente ao que seria esperado, é no livro que há um fading desses personagens, e não versão para o cinema. 
A movimentação deles na praia, aparecendo, desaparecendo e reaparecendo, é suave e verossímil no papel; na tela, feita subitamente, a insinuação da palavra é substituída por uma imagem peremptória e as figuras caricatas dos árabes acabam por se assemelhar a gênios saindo da lâmpada. O filme cumpre sua função como mise-en-scène do livro, realizando uma reconstituição de época e local primorosa e oferecendo algumas imagens vigorosas, como, por exemplo, o corte súbito da leitura da sentença à guilhotina para o pescoço nu de Mersault/Mastroianni.  
Quase vinte anos após Visconti lançar seu olhar sobre O estrangeiro – e quase 
quarenta anos depois de Camus escrevê-lo – a banda de rock inglesa The Cure também utilizou o romance como texto-base, em Killing an arab. O grupo, formado na cidade de Crawley, Inglaterra, em 1976, entorno do vocalista e letrista Robert Smith, surgiu na cena rock em um momento posterior ao do movimento punk e resgatava um imaginário gótico, extremamente idealizado, tanto nas músicas quanto no comportamento: um tom soturno, um enaltecimento da melancolia, um flerte com a morte; resgatava, na verdade, um imaginário romântico do gótico, não sem mirá-lo, muitas vezes, com um olhar irônico. Primeiro single do grupo, a canção foi lançada no Natal de 1978, alcançando grande sucesso de público e de crítica: 

Standing on the beach 
With a gun in my hand 
Staring at the sea 
Staring at the sand 
Staring down the barrel 
At the arab on the ground 
I can see his open mouth 
But I hear no sound 

I'm alive 
I'm dead 
I'm the stranger 
Killing an arab 

I can turn 
And walk away 
Or I can fire the gun 
Staring at the sky 
Staring at the sun 
Whichever I chose 
It amounts to the same 
Absolutely nothing 

I'm alive 
I'm dead 
I'm the stranger 
Killing an arab 

I feel the steel butt jump 
Smooth in my hand 
Staring at the sea 
Staring at the sand 
Staring at myself  


Reflected in the eyes 
Of the dead man on the beach 
The dead man on the beach 

I'm alive 
I'm dead 
I'm the stranger 
Killing an arab 

A música foi centro de intensa polêmica, pois pessoas menos informadas, que não percebiam a intertextualidade com o romance de Camus, acusavam a banda de uma atitude preconceituosa contra os árares. Por ocasião do lançamento da primeira antologia da banda nos Estados Unidos, Standing on a beach, de 1986, o álbum foi vendido com uma etiqueta advertindo os ouvintes contra usos racistas da música; e nas seguintes compilações do conjunto a canção foi regularmente excluída. Em 2005, ao longo de sua turnê pela Europa, a 
banda reintroduziu a canção no repertório, alterando, no entanto, o verso-título para Kissing an arab; e, na turnê de 2007, o verso (e o título) foram definitivamente modificados para Killing another. 
A letra da música desenha, em versos curtos, a cena em que a personagem (que, no entanto, não é nomeado como Mersault) está na praia e atira no árabe; assim como no livro, a voz utilizada é a da primeira pessoa, e o caráter narrativo (sucessão de ações no tempo) é criado mais pela sucessão de momentos estanques – relatos de impressões e sensações – do que pelas construções verbais; a grande maioria dos verbos empregados é de verbos de 
permanência. Não há referência explícita a O estrangeiro ou ao seu protagonista, mas, assim como no livro, o personagem se sente assolado pelo ambiente, pela possibilidade de agir ou não, pelo sem-sentido da existência: "I can turn / and walk away/ or I can fire the gun /(...)/ wichever I chose / is'ts amounts to the same / absolutely nothing". Frente ao corpo morto do árabe, face à irredutibilidade da morte, o narrador-personagem, na música, promove uma troca de lugares e absorve ele próprio a morte e a estranheza àquela realidade: "I'm alive / I'm dead / I'm the stranger / Killing an arab". 
A música do The Cure não foi a única, na Inglaterra da passagem dos anos 1970 para os 1980, que buscou referências na literatura ou que gerou polêmica por aludir com termos violentos aos árabes e ao oriente como um todo. Em 1982, motivada pelo banimento do rock  no Irã por ordem do Aiatolá Khomeini, o The Clash lançou a música Rock the casbah, cuja 
letra satírica ridiculariza diversos elementos da imagerie árabe em nome da (pseudo) democracia ocidental. O grupo, surgido em Londres em 1976 e liderado por Joe Strummer, tinha por característica uma atitude politicamente irreverente; afinado com um discurso de contracultura, declarava seu apoio a grupos radicais de esquerda de todo o mundo, como o IRA e o ETA, chegando ao ponto de o vocalista vestir, em uma apresentação em 1977, uma 
camisa com o emblema da facção de ultra-esquerda alemã Baader-Meinhof. A letra de Rock the casbah, em inglês, mescla em uma única fala expressões em árabe, hebraico, urdu e em dialetos islâmicos do norte da África – como sharif, bedouin, raga, minaret e casbah –,todos sob a rubrica generalizante de "árabe"; em seu enredo, assim como no videoclipe, um rei muçulmano caricato, que dirige cadilacs e escava petróleo, teme a "contagiante" música 
ocidental – "that boogie sound". 
O mundo árabe presente na canção, homogeneizado e estereotipado, é sintomático de um modo de lidar com o Oriente que Edward Said chamou de "Orientalismo". O crítico literário americano de ascendência palestina identifica e localiza, dentro do imaginário de matriz europeia, um discurso sobre o Oriente que é completamente independente de seu suposto referente; tal como aparece nas artes a partir da Idade Moderna, o Oriente surge 
como recriação gerada pelo Ocidente. Afinado com uma estratégia política e econômica tácita, esse discurso neutraliza as funções clássicas do Oriente como fonte, rival e Outro do Ocidente. 
Uma música composta como crítica ao autoritarismo e ao atraso humanitário do mundo islâmico se tornou, posteriormente, agente do imperialismo norte-americano, quando, a partir da Guerra do Golfo, Rock the casbah passou a ser utilizada como um hino não-oficial dos soldados enviados para o Oriente Médio. Versos como o do título (enfatizado no refrão) e "Drop your bombs between the minarets" incentivaram os jovens americanos 
enviados para aquele conflito e, mais tarde, para as Guerras do Afeganistão e do Iraque. Essa subversão de usos, possibilitada pelo significante em aberto da obra de arte, inscreve a arte 
em um solo movediço, de fronteiras imprecisas, no qual os sinais (positivo e negativo, em relação a determinado posicionamento) podem se alternar a qualquer hora.   
À luz dessa ubiquidade fronteiriça pela qual a arte se movimenta, os locais de fala d'O estrangeiro de Camus e das suas duas adaptações para aqui convocadas – Lo straniero, de Visconti, e Killing an arab, do The Cure – ganham destaque e merecem ser questionados. Camus, bem como o narrador de seu romance, pertencia a um grupo social que, embora integrante da etnia dominante na Argélia da década de 1930, amargava uma situação 
econômica precária e um esvaziamento progressivo de seu protagonismo político e social – o qual culminaria na independência do país, em 1962, após cerca de vinte anos de lutas contra o governo Francês –; seu local de fala é o de uma aristocracia decadente e ultrajada, na qual o rancor dirigido à classe ascendente aparece dissimulado atrás de um discurso de convivência segregadora, de domesticação da tensão: para os pied-noirs, o árabe é como o empregado cuja paulatina ascensão se torna incômoda para o patrão em crise. 
Já Visconti fala do lugar de uma intelectualidade europeia da década de 1960 que tenta conciliar sua convicção socialista com uma herança cultural baseada no modo de 
produção capitalista. Opera com uma lógica de concessões: submete-se a uma indústria cinematográfica, mas tenta, dentro dela, resguardar um espaço para sua criatividade e orientação ideológica. Em seu percurso no cinema, é perceptível um distanciamento progressivo do plano imediatamente político em prol de um aprofundamento na investigação dos mecanismos psicológicos e sociais do homem que levam à desigualdade, o qual se traduz tanto na escolha dos textos que adapta quanto na forma como os adapta: em um 
extremo desse continuum estaria La terra trema, filme neorrealista de 1948 que retrata, com atores não profissionais e nas locações originais, os conflitos entre pescadores e negociantes de peixe na Sicília; na outra ponta, L'inoccente, de 1976, produção holywoodiana que aborda os dilemas morais de um nobre sobre matar ou deixar viver o filho bastardo de sua mulher. 
O The Cure, por sua vez, fala do lugar de uma juventude proletária, dos subúrbios industriais ingleses nas décadas de 1970/1980, às portas da Era Thatcher, para a qual a vivência estética se tornava um refúgio de subjetivação em meio a um ambiente afetivamente severo e socialmente esmagador. O absurdo da existência de Camus é, nesse contexto, alinhado com um discurso de estranhamento social; e o árabe, cuja imigração em larga escala para a Inglaterra já era uma realidade e era vista com desconfiança e  desconforto pelos cidadãos ingleses, desempenha papel muito semelhante ao que tem no 
romance: mas, então, em vez de empregado incômodo, é já uma visita indesejada. 
Postas lado a lado as três obras, podem-se observar algumas importantes interseções entre seus pontos de partida: originaram-se todas nas principais potências europeias colonizadoras da África e da Ásia – França, Itália e Inglaterra; esses discursos se relacionam, inevitavelmente, com um local de fala do dominador, malgrado uma maior ou menor intensidade, em cada uma das obras, da dialética dominador-dominado, metrópole-colônia. 
Nas três, a marginalização do Outro (encarnado no árabe) é digerida, e quase obliterada, em nome de um suposto uso alegórico, que subjetiva o conflito social através do direcionamento a tensão seja para uma crise existencial (Camus), seja para uma investigação moral e formal (Visconti), ou ainda para um estranhamento social (The Cure). 
Esses posicionamentos se tornam mais claros quando contrastados com uma obra que aborda temáticas próximas, porém em outra perspectiva, e com outra linguagem, como, por exemplo, Passage, de Shirin Neshat. Neste filme de 2001, a artista plástica e fotógrafa iraniana radicada nos Estados Unidos alterna cenas de um cortejo fúnebre, composto apenas por homens, ao longo de uma praia à beira do deserto; de um grupo de mulheres, ajoelhadas 
e dispostas circularmente, que cavam com as mãos uma cova; e de uma criança, próxima a essa cova, que brinca de empilhar pedrinhas, compondo uma pequena casa circular. Nas palavras do crítico de arte Shoya Azari,  
Passage é um poema visual eloquente que conta simbolicamente a história da perda, pesar, tradição, renovação e esperança humana diante do assombro, espanto e mistério. [...] Impassível diante de sua jornada pelos elementos e meio ambiente, ele marcha cegamente, tentando manter eterna a questão, num constante estado de mudança.  
A semelhança de cenários, a morte enquanto um valor dado, a indiferença da criança e o próprio título da obra, que remete a uma movimentação simbólica, permitem pensar este filme de artista como uma contraface – não uma adaptação, pois uma obra não surgiu a partir da outra – de O estrangeiro originada em um lugar de fala não-hegemônico. 
Em Passage o foco no sujeito se esvazia: à exceção da criança, que brinca e assiste a tudo, as pessoas estão sempre em grupos, jamais individualizadas; os planos-sequência são abertos, tornando as figuras humanas menores e ressaltando a imensidão do espaço. O repertório iconográfico é sintético, e a performance do ritual fúnebre não se liga a nenhuma 
cultura específica; o homem é ressaltado em sua fisicalidade, seja através das mãos que se integram à terra no gesto de cavar, seja na pequenez do grupo em meio ao deserto, filmado de longe, ou ainda na presença mesma de um cadáver, matéria humana desprovida de vida; a natureza é destacada em relação sinestésica com o homem, possui sua mesma densidade e textura. Aliados esses elementos, percebe-se um esvaziamento de qualquer transcendência naquela representação imagética, a qual dá lugar a uma percepção imanentista do mundo. 
Esse mundo de Neshat, compreendido como imanência, desprovido de um sentido ontológico, é o mesmo onde se situa o homem-absurdo de Camus; o mundo como passagem é o mesmo que gera um homem sempre estrangeiro. O árabe – tão particularizado e ao mesmo tempo tão universal – não tem necessidade, em Neshat, de um elemento antagônico, é ele mesmo agente e paciente do arbitrário da existência. 
A poética de Neshat tem como constante a busca por um ponto de contato entre as civilizações, a qual é representada, em muitas de suas obras, por duplicidades, como, por exemplo, a das videoinstalações com duas telas face a face, em uma espécie de díptico. Na trilogia de filmes que Passage integra – composta ainda por Pulse e Possessed –, a 
duplicidade de cenas persiste, embora convirja para uma única tela, em uma dinâmica nem 
paternalista nem tendenciosa: os dois pólos possuem igual relevância, e para este resultado 
colabora o alto rigor formal da artista, cuja composição é frequentemente orientada por uma ordenação geométrica. A duplicidade se faz presente, para além do plano do significante, nas temáticas do deslocamento, do estranhamento e da perda, as quais se apresentam figuradas, muitas vezes, na experiência do exílio, e localizadas, sempre, no contexto da cultura 
islâmica. É dentro da iconografia gerada por esse perfil temático que Azari chama a atenção – tendo em mente, em princípio, a série de fotografias Women of Allah – para a introdução de elementos que cumprem o papel de totens: 

[...] Isto está presente no tema um tanto totêmico dessas fotografias, onde o objeto totem – seja um revólver, uma flor ou um véu – indica uma associação totêmica com uma comunidade. [...] É a infusão do objeto totêmico que transforma a imagem mítica da mulher com o véu, garantindo a possibilidade do discurso. Penetra os espaços sagrados e a iconografia dos cânones islâmicos, e desmonta sua metalinguagem mítica ao devolver o 
significado distorcido para o sistema semiológico, tornando-o, portanto, histórico. Ao escrever Totem e tabu em 1913, Sigmund Freud se utiliza do termo algonquino "totem" (da região dos grandes lagos norte-americanos, trazido para a antropologia primeiramente por McLennan) para designar, na constituição do psiquismo humano, a eleição de um objeto que, substituto simbólico do pai, congrega determinado grupo e estabelece suas interdições. Em Passage, o corpo morto parece se configurar como um totem: ele indica uma ausência, instaura uma ordem simbólica e reúne uma comunidade. No 
entanto, Neshat transporta o totem do plano mítico para o plano histórico, ao invadir o espaço sagrado do rito fúnebre – com o ato de retratá-lo – e ao particularizar a dor – através de uma gestualidade visceral. Esvaziando o caráter transcendente do totem e, na imanência, localizando-o em um circuito cultural fechado, a artista circunscreve o drama do deslocamento, estranhamento e perda em uma relação direta com as forças da natureza: o 
mar, o deserto, o céu, o corpo. 
Se "totem" é o termo que se relaciona a Passage, poder-se-ia, complementarmente, associar "tabu" às três versões de O estrangeiro referidas. Para o "homem-absurdo" Mersault, a arbitrariedade da natureza não é um problema – de fato, é apenas nas sensações físicas que ele vê alguma consistência e sentido –, mas sim a dos homens: seu estranhamento 
se dirige à ordem social e seus interditos. E é justamente porque a personagem é estranha à interdição – desconhece o totem – que o romance, o filme e a canção reforçam o sentido de transgressão não apenas através de um assassinato, mas do assassinato de um membro do grupo proscrito. E o foco na crise existencial (Camus), na investigação moral e formal (Visconti) e no estranhamento social (The Cure) não torna menor, episódico ou casual a 
eleição dos árabes como esse grupo. Na fronteira entre civilizações, O estrangeiro atravessou a fronteira de diversas linguagens: foi adaptado por contextos históricos variades, os quais conferiram diferentes 
matizes à sua proposição; encenando uma busca de identidade, também ele, O estrangeiro, seu núcleo de sentido, teve sua identidade adaptada. O romance, o filme e a música mantiveram-se dentro do registro narrativo, e, coincidentemente, falaram a partir de lugares de fala muito próximos, marcadamente eurocêntricos. Já uma atualização de questões 
semelhantes no registro imagético conseguiu se afastar desse discurso e admitir uma outra perspectiva identitária. Este estudo procurou, a partir da teoria da adaptação e com o auxílio das noções de lugar de fala, totem e tabu, observar os lugares de fala estrangeiros de três discursos sobre um mesmo objeto; e, no desdobramento final, o lugar de fala, estrangeiro aos outros, de um discurso que, sem ser sobre o mesmo objeto, contribui para sua leitura. A 
passagem pelas linguagens revelou a própria linguagem como passagem, diáspora de sentidos, em que cada leitura é um novo passo. E, ao flagrar os lugares de fala, identificou-se o conjunto de valores subjacente a cada uma dessas obras de arte, o que permitiu confrontá-los e proceder a uma leitura menos ingênua – e mais ética. 

  

Referências: 

AZARI, Shoya. Um olhar de dentro sobre a arte de Shirin Neshat. In: Shirin Neshat – entre 
extremos. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 9 de agosto a 22 de setembro de 
2002 (catálogo da exposição). 
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 1998. 
HUTCHEON, Linda. A theory of adaptation. Nova Iorque: Routledge, 2006. 
MICCICHÉ, Lino. Luchino Visconti: un profile critico. Veneza: Marsílio, 2002. 
NESHAT, Shirin. Passage. Nova Iorque: Barbara Gladstone; Parrot Productions, 2001. 
ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: 
Zahar, 1998. 
SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 
SONTAG, Susan. Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 
VISCONTI, Luchino. Lo straniero. Roma: Dino di Laurentiis Cinematografica; Paris: 
Marianne Production; Argel: Casbah Film, 1967. 
http://www.thecure.com/ 
http://www.theclash.com/ 
http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/ 
(sites acessados em março de 2009) 



ABSTRACT: Albert Camus' novel The stranger was adapted to movie by Luchino Visconti and inspired a 
song by The Cure. Through a comparative perspective, this study aims to observe the specificity of each one of 
those languages, as well as apprehend the different places of speech of those creations, by making a 
comparison whit a Shirin Neshat's videoart work . 


Key-words: Passages; Places of speech; Intersemiotic transpos

Fonte: http://www.ufjf.br/darandina/files/2010/01/artigo23.pdf



quarta-feira, 11 de dezembro de 2013


Por
Ruben Alves


SE É BOM OU SE É MAU...

"Quero contar para vocês a estória que mais tenho contado - não aconteceu nunca, acontece sempre. Um homem muito rico, ao morrer, deixou suas terras para os seus filhos. Todos eles receberam terras férteis e belas, com a exceção do mais novo, para quem sobrou um charco inútil para a agricultura. Seus amigos se entristeceram com isso e o visitaram, lamentando a injustiça que lhe havia sido feita. Mas ele só lhes disse uma coisa: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá." No ano seguinte, uma seca terrível se abateu sobre o país, e as terras dos seus irmãos foram devastadas: as fontes secaram, os pastos ficaram esturricados, o gado morreu. Mas o charco do irmão mais novo se transformou num oásis fértil e belo. Ele ficou rico e comprou um lindo cavalo branco por um preço altíssimo. Seus amigos organizaram uma festa porque coisa tão maravilhosa lhe tinha acontecido. Mas dele só ouviram uma coisa: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá." No dia seguinte seu cavalo de raça fugiu e foi grande a tristeza. Seus amigos vieram e lamentaram o acontecido. Mas o que o homem lhes disse foi: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá." Passados sete dias o cavalo voltou trazendo consigo dez lindos cavalos selvagens. Vieram os amigos para celebrar esta nova riqueza, mas o que ouviram foram as palavras de sempre: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá." No dia seguinte o seu filho, sem juízo, montou um cavalo selvagem. O cavalo corcoveou e o lançou longe. O moço quebrou uma perna. Voltaram os amigos para lamentar a desgraça. "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá", o pai repetiu. Passados poucos dias vieram os soldados do rei para levar os jovens para a guerra. Todos os moços tiveram de partir, menos o seu filho de perna quebrada. Os amigos se alegraram e vieram festejar. O pai viu tudo e só disse uma coisa: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá..."
Assim termina a estória, sem um fim, com reticências... Ela poderá ser continuada, indefinidamente. E ao contá-la é como se contasse a estória de minha vida. Tanto os meus fracassos quanto as minhas vitórias duraram pouco. Não há nenhuma vitória profissional ou amorosa que garanta que a vida finalmente se arranjou e nenhuma derrota que seja uma condenação final. As vitórias se desfazem como castelos de areia atingidos pelas ondas, e as derrotas se transformam em momentos que prenunciam um começo novo. Enquanto a morte não nos tocar, pois só ela é definitiva, a sabedoria nos diz que vivemos sempre à mercê do imprevisível dos acidentes. "Se é bom ou se é mau, sé o futuro dirá."


Sobre o autor: 
Bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, Mestre em Teologia e Doutor em Filosofia (Ph.D.) peloSeminário Teológico de Princeton (EUA) e psicanalista. Lecionou no Instituto Presbiteriano Gammon, na cidade de Lavras, Minas Gerais, no Seminário Presbiteriano de Campinas, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro e na UNICAMP, onde recebeu o título de Professor Emérito. Tem um grande número de publicações, tais como crônicasensaios e contos, além de ser ele mesmo o tema de diversas tesesdissertações e monografias. Muitos de seus livros foram publicados em outros idiomas, como inglês, francês, italiano, espanhol, alemão e romeno.
Com formação eclética, transita pelas áreas de teologiapsicanálisesociologiafilosofia e educação. Após ter lecionado em universidades, hoje tem um restaurante (a culinária é uma de suas paixões e tema de alguns de seus textos), vive em Campinas, onde mantém um grupo, chamado Canoeiros, que encontra-se semanalmente para leitura de poesias.
Sua mensagem é direta e, por vezes, romântica, explorando a essência do homem e a alma do ser. É algo como um contraponto à visão atual de homo globalizadus que busca satisfazer desejos, muitas vezes além de suas reais necessidades.
"Ensinar" é descrito por Alves como um ato de alegria, um ofício que deve ser exercido com paixão e arte. É como a vida de um palhaço que entra no picadeiro todos os dias com a missão renovada de divertir. Ensinar é fazer aquele momento único e especial.Ridendo dicere severum: rindo, dizer coisas sérias. Mostrando que esta, na verdade é a forma mais eficaz e verdadeira de transmitir conhecimento. Agindo como um mago e não como um mágico. Não como alguém que ilude e sim como quem acredita e faz crer, que deve fazer acontecer.
Em alguns de seus textos, cita passagens da Bíblia, valendo-se de metáforas. No site A Casa de Rubem Alves encontram-se releituras e discussões de suas obras.
É cidadão honorário de Campinas onde recebeu a Medalha Carlos Gomes de contribuição à cultura.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013



Guimarães Rosa

"Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa." Frase extraída da obra Grande Sertão Veredas.

Sobre o autor: entrevista concedida por Guimarães Rosa ao escritor e jornalista Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Publicada no livro “Conversas com Escritores Brasileiros”, editora ECL em parceria com o Congresso Portugal-Brasil.

Eis o homem. O homem que em menos de 20 anos, com sua prosa, seu estilo, sua literatura — sem os favores profissionais da medicina, que pode dar saúde mas ainda não deu gênio (cf. alguns prêmios Nobel), conquistou o Brasil, Portugal, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos, o mundo, não?
Repara no corpo: mau grado as ligeiras ameaças de obesidade, parece atleta, cavaleiro que foi, ou de bandeirante, que da língua é. Vê como está sobriamente elegante, distinto, sorridente, calmo, aristocrata, como convém a um embaixador (ou não estivéssemos num salão do Itamarati). Mas nada da pose ou dos gestos artificiais com que outros tentam iludir a mediocridade. Quem esperou quase quarenta anos para publicar o primeiro livro, ou quem avançou sozinho pelos grandes sertões da língua, não precisa ter pressa nem pedir emprestado um corpo, uma casaca, máscaras.
Lá está o lacinho (ou gravata-borboleta, meu chapa?) simetricamente impecável, fazendo pendant com os óculos claros, tão claros que ainda esclarecem mais os olhos sempre inquiridores, atentos. E é curioso como um mineiro de Cordisburgo, a dois passos (brasileiros) da Ita­­bira de Drum­mond, gosta, ao contrário deste (à primeira vista), de falar, de con­tar, de ser ouvido. Até nisso parece grande o seu amor à língua. Mal me sentei, já ele me começou a falar de Portugal e de escritores portugueses…
Estive em Portugal três vezes. Na primeira, em 1938, passei lá apenas um dia; ia a caminho da Alemanha. Na segunda, em 1941, passei lá quinze dias, em cumprimento de uma missão diplomática que me fora confiada em Ham­­burgo. Na terceira, em 1942, passei um mês, pois estava já de regresso ao Brasil, por causa da guerra.
Durante essas estadas, travou relações ou conhecimentos com alguns escritores?
Não. Até porque eu ainda não era “escritor” (“Sagarana”, com efeito, só foi publicado em 1946) e o que me interessava mais era contatar com a gente do povo, entre a quais fiz algumas amizades. Gosto mui­to do português, sobretudo da sua integridade afetiva. O brasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia, enquanto o português é mais pedra. Eu tenho ainda uma costela portuguesa. Minha família do lado Gui­marães é de Trás-os-Montes. Em Minas o que se vê mais é a casa minhota, mas na região em que eu nasci havia uma “ilha” transmontana.
Mas não chegou a conhecer Aquilino?
Conheci Aquilino (Aquilino Ribeiro), mas acidentalmente. Eu entrei numa livraria, não sei qual, do Chiado (presumo que a Bertrand) e, quando pedi al­guns livros dele, o empregado per­guntou-me se eu queria co­nhecê-lo, pois estava ali mesmo. Respondi que sim, e desse modo obtive dois ou três autógrafos de Aquilino, com quem conversei alguns instantes. Voltei a estar com ele, mais tarde, num jantar que lhe foi oferecido enquanto de sua vinda ao Brasil. Mas ele, naturalmente, não se recordava de mim (porque eu não me apresentara como escritor), e eu também não lhe falei do assunto.
Não sabe que, justamente numa crônica motivada pela sua ida ao Brasil, Aquilino colocou o seu nome, logo em 1952, ao lado dos de José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Agripino Grieco, que, segundo ele, eram os “notáveis escritores e poetas” que estavam a “encostar a pena contra a lava” que ia no Brasil “sepultando prosódia e morfologia da língua-mater”? Eu creio mesmo que é essa uma das primeiras referências ao seu nome, em Portugal…
Não sabia dessa curiosa referência do Aquilino. Antes dessa, porém, há uma referência a mim numa publicação do Consulado do Porto, de 1947, feita por não sei quem. Sei de outra referência feita, anos depois, salvo erro, por um irmão de José Osório de Oliveira.
Voltando a Aquilino: acha que recebeu alguma influência dele? Já, pelo menos, um crítico, o mineiro Fábio Lucas, notou alguns “pontos de contato nada desprezáveis” entre a sua obra e a de Aquilino.
Eu gosto de Aquilino, sobretudo da “Aventura Maravilhosa”, mas não creio que dele tenha recebido alguma influência, a não ser na medida em que sou influenciado por tudo o que leio. A verdade é que antes de 1941 só conhecia de Aquilino um ou dois trechos, co­mo infelizmente ainda hoje sucede em relação à quase totalidade dos escritores portugueses vivos. E, como sabe, “Sagarana”, foi escrito em 1937.
Um garçom do Itamarati entra com um copo de água, e pergunta se precisa mais alguma coisa. Guimarães Rosa agradece e diz: Vá com Deus, como se fosse um beirão ou um transmontano. Mais uma razão, portanto, para eu prosseguir: Como encara ou explica o enorme prestígio de que goza nos meios intelectuais e universitários portugueses?
Em relação a mim, houve por aqui (no Brasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Por­tugal. Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eu tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. Uma das coisas que eu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, uma palavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a” História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias de naufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Ber­nardo Gomes de Brito e publicados em 1735). Já vê, por aqui, que as minhas “raízes” es­tão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande a distância “linguística” que me se­para dos portugueses.
Eu penso até que na imediata e incondicional adesão portuguesa a Gui­marães Rosa há muito de transferência sublimada de uma frustração linguística nossa, coletiva, que vem pelo menos desde Eça. Mas não nos desviemos. Admira-me muito que não tenha citado ne­nhum livro de ca­valaria, nem ne­nhuma novela bu­cólica, pois pensava que deles e delas havia diversas ressonâncias na sua obra, sobretudo no “Gran­de Sertão: Veredas”…
Sim, li muitos livros de cavalaria quando era menino, e, por volta dos 14 anos, entusiasmei-me com Ber­nardim (Bernardim Ri­beiro), e depois até com Camilo. Ainda continuo a gostar de Ca­milo, mas quem releio permanentemente é Eça de Queiroz (quando tenho uma gripe, faz mesmo parte da convalescença ler “Os Maias”; este ano já reli quase todo “O Crime do Padre Amaro” e parte da “Ilustre Casa de Ramires”). Camilo, leio-o como quem vai visitar o avô; Eça, leio-o como quem vai visitar a amante. Quando fui a Portugal pela primeira vez, eu só queria comidas ecianas (que gostosura, aquele jantar da Quinta de Tormes). Aliás deixe-me que lhe diga que me torno muito materialista quando penso em Portugal; penso logo nos bons vinhos, nas excelentes comidas que há por lá. E talvez seja também por isso que se há um país a que eu gostaria de voltar é Portugal…
… que, naturalmente, o receberá de braços abertos, em festa. Mas permita-me ainda uma pergunta: como “enveredou” — e penso que a palavra se ajusta bem ao seu caso – pelo campo da “invenção linguística?
Quando escrevo, não pen­so na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Mo­çambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem à gíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha” só correm em Por­tugal — será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sem­pre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um ato religioso. Tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um ca­derninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido — até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.
Guimarães Rosa vai buscar uma fotografia para me mostrar onde levava o caderninho de notas, nas boiadas: vai buscar uma pasta com a correspondência com um seu tradutor norte-americano, para me mostrar as dúvidas e dificuldades deste, e o trabalho, a seriedade e a minúcia com que as vai resolvendo uma por uma (escrevendo, ele próprio, preciosas autoanálises estilísticas ou considerações filológicas). E, entretanto, vai-me fazendo outras confissões interessantes. Por exemplo:  “gosto das traduções que filtram. Da tradução italiana do Cor­po de Baile gosto mais do que do original.” Ou: “Estou cheio de coisas para escrever, mas o tempo é pouco, o trabalho é lento, lambido, e a saúde também não é muita.” Ou: “Não faço vida literária: como regra, saio daqui e vou para casa, onde trabalho até tarde.” Ou: “No próximo ano, vou publicar um livro ainda sem título, com 40 estórias” (que têm aparecido quinzenalmente, no jornal dos médicos “O Pulso”, onde frequentemente aparecem também cartas ou a atacá-lo ou a defendê-lo ferozmente). Ou ainda: “eu não gosto de dar, nem dou entrevistas. Tenho sempre a sensação de que não disse o que queria dizer, ou que disse mal o que disse, ou que criei maior confusão; e não estou assim tão seguro do que procuro e do que quero. Com você abri uma exceção…”.