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01.06.2015
"A arte é o casamento do ideal e do real. Fazer arte é um ramo da
artesania. Artistas são artesãos, mais próximos dos carpinteiros e dos
soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com sua retórica
inflacionada e autorreferencial. A arte usa os sentidos e a eles fala.
Funda-se no mundo físico tangível." - Camille Paglia,
Imagens cintilantes
A escritora norte-americana Camille Paglia é conhecida por desafiar as
ideias em voga nos mais diversos campos. Professora de Humanidades e
Estudos Midiáticos da University of the Arts da Filadélfia, é autora de
obras que misturam cultura pop, história da arte, sexualidade e os
diferentes meios que tornam o homem um espectador: seja na frente da
televisão, de um Pollock ou de sua própria vida.
Em sua mais recente obra,
Imagens cintilantes - uma viagem através da arte desde o Egito a 'Star Wars'
(Apicuri, 2014), Camille retorna ao local que a consagrou, a crítica à
arte contemporânea. No livro, a autora analisa 29 obras que considera
fundamentais na história da arte e afirma, com certa decepção, que os
jovens deixaram ofícios como a pintura e a escultura para emprestar sua
lealdade à tecnologia e ao design industrial.
Paglia resumiu o panorama que motivou a criação de Imagens cintilantes:
“O
olho sofre com anúncios piscando na rede. Para se defender, o cérebro
fecha avenidas inteiras de observação e intuição. A experiência digital é
chamada interativa, mas o que eu vejo como professora é uma crescente
passividade dos jovens, bombardeados com os estímulos caóticos de seus
aparelhos digitais. Pior: eles se tornam tão dependentes da comunicação
textual e do correio eletrônico, que estão perdendo a linguagem do
corpo."
De acordo com ela, esta degeneração gradativa da
percepção/expressão tem um grande inimigo: o mercado – das galerias às
instituições de ensino. Segundo a norte-americana, este mercado não é
apenas um objeto a ser combatido, mas sim um profundo problema de visão
sobre a vida, que parte, também, do espectador. Ensinado a enxergar o
mundo apenas de forma política e ideológica, o homem contemporâneo teria
perdido a esfera do sensível, do invisível, do metafísico. Este
contexto de constante estímulo atinge a sociedade como um todo, como
Camille argumenta logo na introdução da obra:
“A vida moderna é um mar de imagens. Nossos olhos são inundados por
figuras reluzentes e blocos de texto explodindo sobre nós por todos os
lados. O cérebro, superestimulado, deve se adaptar rapidamente para
conseguir processar esse rodopiante bombardeio de dados desconexos. A
cultura no mundo desenvolvido é hoje definida, em ampla medida, pela
onipresente mídia de massa e pelos aparelhos eletrônicos servilmente
monitorados por seus proprietários. A intensa expansão da comunicação
global instantânea pode ter concedido espaço a um grande número de vozes
individuais, mas, paradoxalmente, esta mesma individualidade se vê na
ameaça de sucumbir.
Como sobreviver nesta era da vertigem? Precisamos reaprender a ver. Em
meio à tamanha e neurótica poluição visual, é essencial encontrar o
foco, a base da estabilidade, da identidade e da direção na vida. As
crianças, sobretudo, merecem ser salvas deste turbilhão de imagens
tremeluzentes que as vicia em distrações sedutoras e fazem a realidade
social, com seus deveres e preocupações éticas, parecer estúpida e
fútil. A única maneira de ensinar o foco é oferecer aos olhos
oportunidades de percepção estável – e o melhor caminho para isso é a
contemplação da arte."
Ainda em seu texto introdutório, Camille critica as instituições de
ensino por falharem completamente no ensino da visão que nos tiraria
desta vertigem. Se precisamos reaprender a ver, as faculdades de arte,
para ela, poderiam ser consideradas mais um empecilho do que uma
parceira nesta tarefa. Leia, abaixo, o que ela tem dizer sobre isso a
partir de excerto do livro
Imagens cintilantes:
“É de uma obviedade alarmante que as escolas públicas norte-americanas
têm feito um mau serviço na educação artística dos estudantes. Da
pré-escola em diante, a arte é tratatda como uma prática terapêutica –
projetos com cartolina do tipo “faça você mesmo" e pinturas com os dedos
para liberar a criatividade oculta das crianças. Mas o que de fato faz
falta é um quadro histórico de conhecimentos objetivos acerca da arte.
As esporádicas excursões ao museu, mesmo que haja um por perto, são
inadequadas. Os cursos de história da arte deveriam ser integrados ao
currículo do ensino primário, fundamental e médio - uma introdução
básica à grande arte e a seus estilos e símbolos. O movimento
multiculturalista que se seguiu à década de 1960 ofereceu uma tremenda
oportunidade para expandir o nosso conhecimento do mundo da arte, mas
suas abordagens têm com demasiada frequência sacrificado a erudição e a
cronologia em favor de um partidarismo sentimental e de queixumes
rotineiros.
Era de se esperar que as faculdades que oferecem cursos de artes
liberais dessem ênfase à educação artística, mas não é esse o caso. O
atual currículo, de estilo self-service, torna os cursos de história da
arte disponíveis, mas não obrigatórios. Com raras exceções, as
universidades abandonaram toda noção de um núcleo de aprendizado. Os
departamentos de humanidades oferecem uma mixórdia de cursos feitos sob
medida para os interesses de pesquisa dos professores. Tem havido um
gradual eclipse, nos Estados Unidos, do curso de história geral da arte,
que cobria magistralmente, em dois semestres, da arte das cavernas ao
modernismo. Apesar de sua popularidade entre os estudantes, que se
recordam deles como pontos culminantes em suas vivências universitárias,
os cursos gerais são cada vez mais vistos como excessivamente pesados,
superficiais ou eurocêntricos – e não há mais vontade institucional de
estendê-los para a arte mundial.
Jovens professores, criados em meio ao pós-estruturalismo, com sua
suspeita mecânica da cultura, consideram-se especialistas, e não
generalistas, e não foram treinados para pensar sobre trajetórias tão
vastas. O resultado final é que muitos alunos de humanidades se formam
com pouco senso da cronologia ou da deslumbrante procissão de estilos
que constituía a arte ocidental.
A questão mais importante acerca da arte é: o que permanece e por quê?
As definições de beleza e os padrões de gosto mudam constantemente,
mas padrões persistentes subsistem. Defendo uma visão cíclica da
cultura: os estilos crescem, chegam ao ápice e decaem para tornarem a
florescer, num renascer periódico. A linha de influência artística pode
ser vista claramente na cultura ocidental, com várias interrupções e
recuperações, desde o Egito antigo até hoje – uma saga de 5 mil anos que
não é (como diria o jargão acadêmico) uma “narrativa" arbitrária e
imperialista. Grande número de objetos teimosamente concretos – não
apenas “textos" vacilantes e subjetivos – sobrevivem desde a antiguidade
e as sociedades que moldaram.
A civilização é definida pelo direito e pela arte. As leis governam o
nosso comportamento exterior, ao passo que a arte exprime nossa alma. Às
vezes, a arte glorifica o direito, como no Egito; às vezes, desafia a
lei, como no Romantismo.
O problema com abordagens marxistas que hoje permeiam o mundo
acadêmico (via pós-estruturalismo e Escola de Frankfurt) é que o
marxismo nada enxerga além da sociedade. O marxismo carece de metafísica
– isto é, de uma investigação da relação do homem com o universo,
inclusive a natureza. O marxismo também carece de psicologia: crê que os
seres humanos são motivados apenas por necessidades e desejos
materiais. O marxismo não consegue dar conta das infinitas refrações da
consciência, das aspirações e das conquistas humanas.
Por não perceber a dimensão espiritual da vida, ele reduz
reflexivamente a arte à ideologia, como se o objeto artístico não
tivesse outro propósito ou significado além do econômico ou do político.
Hoje, ensinam aos estudantes a olhar a arte com ceticismo, por seus
equívocos, suas parcialidades, suas omissões e ocultos jogos de poder.
Admirar e honrar a arte, exceto quando transmite mensagens politicamente
corretas, é considerado ingênuo e reacionário. Um único erudito
marxista, Arnold Hauser, em seu épico estudo de 1951, A história social
da arte, teve bom êxito na aplicação da análise marxista, sem perder a
magia e o mistério da arte. E Hauser (uma das influências iniciais do
meu trabalho) trabalhava com base na grande tradição da filologia alemã,
animada por uma ética erudita que hoje se perdeu.
A arte é o casamento do ideal e do real. Fazer arte é um ramo da
artesania. Artistas são artesãos, mais próximos dos carpinteiros e dos
soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com sua retórica
inflacionada e autorreferencial. A arte usa os sentidos e a eles fala.
Funda-se no mundo físico tangível.
O pós-estruturalismo, com suas origens linguísticas francesas, tem a
obsessão pelas palavras e, com isso, é incompetente para interpretar
qualquer forma de arte além da literatura. O comentário sobre arte deve
abordá-la e descrevê-la em seus próprios termos. Deve-se manter um
delicado equilíbrio entre os mundos visível e invisível. Aqueles que
subordinam a arte a uma agenda política contemporânea são tão culpados
de propaganda e rigidez literal como qualquer pregador vitoriano ou
burocrata stalinista.
Fonte: http://www.fronteiras.com/artigos/o-impacto-do-ensino-da-arte-ou-da-falta-dele-na-percepcao-do-mundo